CONSTATAÇÃO  ARRAZADORA

MIGUEL REALE

 

                   O “Programa Internacional de Avaliação de Alunos” (PISA) surpreendeu-nos, há poucos dias, com a notícia de que, entre os 32 países submetidos ao teste de capacidade de compreensão de leitura, os estudantes brasileiros figuraram em último lugar. A indagação foi feita entre alunos de 15 anos, independentemente da série em que se achavam matriculados, no curso fundamental ou no médio, constituindo, a meu ver, um índice inestimável para avaliação de nossos métodos de ensino.

                   Muito embora o Ministro da Educação tenha tentado amenizar esse triste resultado, ele me parece revelador da falha fundamental de que padece a educação no Brasil, pois nada é mais grave do que a incapacidade de compreensão do que se lê, conjugada quase sempre com a incapacidade de se expressar o que se sabe.

                   Muitas são as causas desse desastre, que vai da escola fundamental à universidade, mas talvez a principal seja o erro de reduzir o ensino a uma transmissão unilateral de conhecimentos, sem diálogo entre o professor e o aluno, sem participação efetiva deste, colocado na posição passiva de mero destinatário de informações.

                   Na era que se pretende ser a da informática, é deveras lastimável que isso aconteça, atribuindo-se geralmente a pretenso “primado da memória” o que, na realidade, não passa de mera decoração de palavras, sem se reconhecer, como o demonstra Hans Gadamer, o maior dos hermeneutas contemporâneos, que a palavra é a sua imaginativa interpretação. É a razão pela qual o ensino não pode se basear exclusivamente na memória ou no intelecto, mas deve resultar de ambos potenciados pela imaginação criadora a fim de que o aluno assimile o que lhe é ensinado e se habitue a pensar por si mesmo. Em grande parte, por isso, o processo de ministração de conhecimentos depende da pessoa do professor, falhando este quando apenas ensina a rascunhar as palavras, como se esse desenho de letras importasse em real alfabetização. Como se vê, muitas vezes, a deficiência de nosso sistema educacional começa na escola fundamental, que deveria ter papel insubstituível na formação da personalidade, a qual começa com a autoconsciência dos valores transmitidos.

                   Quando a ausência de participação criadora prossegue no curso médio, o que temos é tão somente uma cumulação extrínseca de noções, sem que o discípulo chegue à elaboração autônoma de conceitos e de idéias. Daí o desamor à leitura e o conseqüente empobrecimento da linguagem, que infelizmente os programas de televisão incrementam, tal a sua carência vocabular, como é exemplo o adjetivo legal, com o qual as novas gerações exprimem tudo, desde o útil ao agradável, desde o magnífico ao excepcional.

                   No fundo, não se ensina a pensar, isto é, a estabelecer relações conseqüentes de causa a efeito, ou de meio a fim, o que redunda em perda dos valores da linguagem, sem os quais não se consegue compreender o que se lê, nem  expressar o pouco que se sabe.

                   Como há uma relação essencial entre ciência e linguagem - até o ponto de haver pensadores que tudo reduzem à semiótica, ou teoria geral dos sígnos – devemos acrescentar aos motivos já lembrados para explicar a generalizada incapacidade de compreensão, a impressionante queda verificada no ensino das letras, dada a dominante preferência pelo ensino científico ou técnico. Ora, nada melhor do que um belo conto ou romance para se ensinar a raciocinar, já se tendo atribuído certa sutileza do pensamento japonês a seu amor pelo haicai.

                   Não se tem mais a preocupação nas salas de aula, pela composição, ou seja, pela exposição de um tema ou a opinião sobre um livro, de preferência de um clássico, que corresponde a valores consolidados, julgando-se que bastam os enunciados científicos para se ter consciência plena desse bem primordial que é a palavra. O resultado inesperado, porém, dessa apressada convicção é outro nosso fracasso, pois nos foi também desfavorável a avaliação de novos jovens estudantes no que se refere ao aprendizado das ciências e da matemática.

                   A precisão de um conceito científico ou técnico implica um rico cabedal lingüístico, pondo-se sempre a necessidade das palavras adequadas para se indicar a natureza específica dos fenômenos, sejam eles naturais ou espirituais.

                   Nesse sentido, pense-se no que está acontecendo com os concursos instaurados para seleção de operadores do Direito, juízes, promotores, delegados, ou simples advogados: os jovens candidatos, no mais das vezes, são reprovados pela incapacidade de exposição, quando não ocorre a repulsa por erros crassos de linguagem. O mesmo acontece nos domínios das ciências exatas.

                   Nessa ordem de idéias, tenho uma experiência pessoal significativa, pois é freqüente o recebimento de e-mail de estudantes de Direito pedindo explicações sobre tópicos de meu livro Lições Preliminares do Direito, onde a matéria jurídica é exposta com a maior simplicidade possível, sob pena de comprometer seu significado.

                   Prevalece, em suma, a lei do mínimo esforço no plano da cultura, como se esta pudesse ser transmitida com todos os seus problemas já resolvidos e mastigados, para a fruição gratuita e preguiçosa de seus valores, sem se compreender que o que a caracteriza é a solução de problemas para colocar outros em seu luar, em uma incessante procura do bem e da verdade.

                   Tempo já houve em que se aprendia a pensar graças ao estudo do latim, com suas declinações nos fazendo ver o valor de cada elemento lingüístico na estrutura da frase. Extinto o latim, sobreveio a preocupação pela “análise lógica” destinada a ensinar a ler e a pensar, mas que acabou se perdendo em um preciosismo verbal. Superado esta, tudo ficou entregue à livre iniciativa dos mestres, a maioria dos quais acabou falhando em sua missão, em grande parte devido à falta de real vocação para o magistério, ou, verdade seja dita, devido a vícios da formação profissional recebida de mal orientadas ou precárias entidades universitárias.

                   Como se vê, os decepcionantes resultados aferidos não resultam apenas de deficiências de nossos sistema de ensino, ou dos órgãos públicos que presidem à sua execução, mas afundam suas raízes em reiterados desvios de nossa formação cultural, comprometida por planos e programas que não cuidaram dos meios e processos indispensáveis para superamento da mentalidade dominante no sentido de se alcançarem gratuitamente benesses, sem aturados esforços e sacrifícios.

                   22/12/2001